Prioridades

Zapeando na internet (oi, invento expressões), encontrei o trecho de um texto (“Assustada De Repente”) de Lydia Davis.

“A Lagarta

Acho uma pequena lagarta na minha cama de manhã. Não há nenhuma janela boa para eu jogar a lagarta, e não esmago nem mato nenhum ser vivo, a menos que seja inevitável. Então me dou ao trabalho de levar pela escada essa lagartinha fina, escura, sem pêlos, com a intenção de ir até o jardim. Não é uma lagarta de mariposa, embora seja do mesmo tamanho. Não arqueia o corpo no meio, mas caminha reta, firme, com os seus muitos pares de pernas. Quando saio do quarto, ela já está andando bem depressa sobre as protuberâncias da minha mão.

Mas no meio da escada, ela some - minha mão está vazia, dos dois lados. A lagarta deve ter se soltado e caído. Não consigo ver a lagarta. O vão da escada está escuro e os degraus são pintados de marrom-escuro. Eu podia pegar uma lanterna e procurar essa coisinha para salvar a sua vida. Mas não vou chegar a esse ponto - ela vai ter que se virar sozinha. Porém, como é que ela vai conseguir chegar à porta dos fundos e sair para o jardim?

Vou cuidar da minha vida. Acho que esqueci a lagarta, mas não esqueci. Agora, toda vez que subo ou desço a escada, evito o lado de cá dos degraus. Tenho certeza de que a lagarta está ali, tentando descer.

Enfim, desisto. Pego a lanterna. O problema agora é que os degraus estão muito sujos. Não limpo a escada porque ninguém vê os degraus aqui no escuro. E a lagarta é, ou era, muito pequena. Sob o facho de luz da lanterna, muita coisa se parece com ela - uma lasquinha bem fina de madeira ou um pedaço de linha grossa. Mas quando eu toco, não se mexem. Procuro em todos os degraus daquele lado da escada e depois do outro lado também. A gente sempre acaba apegado a qualquer ser vivo, depois que tenta ajudá-lo. Mas a lagarta não está ali. Tem muita poeira e muitos pêlos de cachorro nos degraus. A poeira pode ter colado o corpinho da lagarta e aí ficou difícil para ela se movimentar, ou pelo menos ficou difícil ir na direção que queria. Pode ter até secado a lagarta toda. Mas, afinal, por que ela haveria de descer em vez de subir? Não olhei no patamar acima do local onde ela sumiu. Não vou chegar a esse ponto.

Volto para o meu trabalho. Então começo a esquecer a lagarta. Esqueço durante uma hora, até eu ter de descer a escada de novo. Dessa vez, vejo que lá num dos degraus tem alguma coisa exatamente do mesmo tamanho, formato e cor. Mas está seco e achatado. Não pode ser ela, de jeito nenhum. Deve ser uma folhinha de pinheiro ou um pedaço de alguma outra planta.

Quando volto a pensar na lagarta, percebo que me esqueci dela por várias horas. Só penso na lagarta quando subo ou desço a escada. No final das contas, ela está mesmo em algum lugar, tentando achar o caminho para uma folha verde, ou então morrendo. Mas agora eu já não me importo tanto. Em breve, tenho certeza, vou esquecer a lagarta completamente.

Mais tarde, há um cheiro desagradável de bicho pairando na escada, mas não pode ser a lagarta. Ela é pequena demais para ter algum cheiro. Agora, ela na certa já morreu. De fato, era pequena demais para que eu ficasse pensando nela a vida toda.”

Viu?

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